Por Maria do Mar Gago
A proposta desta investigação foi examinar a história do café de Angola a partir do olhar dos botânicos e agrónomos a trabalhar para o estado colonial. O resultado foi Robusta Empire: Coffee, Scientists and the Making of Colonial Angola (1898-1961), uma dissertação que usa a história desta cultura agrícola para reflectir sobre a natureza do colonialismo português em África.
A chave para esta reflexão é a forma como os cientistas abordavam o café angolano, não apenas como “café”, mas como café Robusta. Esta pequena nuance, para alguns historiadores uma mera particularidade técnica, é crucial para compreender a história do café neste preciso lugar e momento na história. A principal tese desta dissertação é que somente considerando as dimensões ambiental e tecnológica da história do café angolano podemos compreender a robustez do projecto imperial que visava transformar esta colónia num dos principais produtores mundiais de café. História da ciência, história da tecnologia, história ambiental e história colonial cruzam-se para compreender a construção deste Império Robusta, numa narrativa que questiona versões simplistas e de-cima-para-baixo da história agrícola colonial e explora aspectos menos óbvios da relação colonial. Apesar de centrada em Angola, a investigação estabelece importantes conexões entre a história do imperialismo português (e europeu) tardio e a dos Estados Unidos enquanto poder hegemónico do pós-guerra.
A produção de café tem sido apresentada na historiografia de Angola como um exemplo paradigmático de uma forma retrógrada de domínio colonial, e as práticas de coerção e violência associadas aos regimes de trabalho forçado apontadas como a razão para o seu sucesso enquanto mercadoria imperial. Não tendo como objectivo negar esta história de violência, esta investigação segue outro caminho. Na primeira parte da dissertação, e pelas mãos dos botânicos e agrónomos a trabalhar em torno dos Serviços de Agricultura de Angola (entre 1898 e 1939), somos conduzidos às florestas onde o café era plantado e levados a reconhecer que a planta explorada nesta colónia (o café Robusta) era uma espécie indígena dessas mesmas florestas – as “florestas do nevoeiro,” segundo a nomenclatura da época, devido à permanente neblina que cobria estas florestas durante a época seca. Através dos relatórios produzidos por estes cientistas, compreendemos o sistema agro-florestal que estava por detrás da produção de café em Angola e como este sistema foi inventado para tirar proveito das condições ambientais da planta no seu estado selvagem. Finalmente, apercebemo-nos que não apenas os europeus mas também os africanos cultivavam esta planta de acordo com uma trama histórica remota e intricada; não só os sistemas de cultivo europeu e africano divergiam pouco entre si (a não ser, evidentemente, em termos de escala), como um quarto da produção da colónia provinha de produtores africanos – aspecto que tem sido negligenciado pelos historiadores do Império Português. Quer isto dizer que não só as grandes plantações europeias como as lavras africanas alimentavam a economia angolana e o Império Português, e que era no meio da floresta e das montanhas, em locais onde antes a planta crescia espontaneamente, que se localizavam ambos os sistemas de produção. Nesta dissertação defende-se que esta dimensão ambiental (e tecnológica) do Robusta é essencial para compreender a força da produção indígena não-coerciva, aspecto que parece estar ausente da história de outras culturas de rendimento em Angola, como o algodão ou o açúcar.
Por outro lado, acompanhar a construção do Império Robusta pela mão dos agrónomos permite-nos também compreender como é que o Império Português foi capaz de responder ao aumento de procura deste tipo de café no mercado global após a Segunda Guerra Mundial, procura essa associada a uma tendência de consumo, a do café instantâneo (do tipo Nescafé). Na segunda parte da dissertação chama-se a atenção para a estratégia imperial portuguesa que tinha como objectivo transformar o Robusta angolano numa “verdadeira mercadoria”, isto é, num bem comercializado cuja identidade podia ser independente do vendedor – aspecto igualmente ignorado por uma historiografia demasiado focada na questão do trabalho forçado ou nos mercados. Ao seguirmos os cientistas (entre 1936 e 1961) compreendemos como esta estratégia imperial se materializou em políticas que visavam estandardizar o café e que tiveram implicações concretas como a construção de fábricas de beneficiamento, a implementação de um sistema de classificação ou a criação de um standard angolano de café. Tais práticas de estandardização foram desenhadas, implementadas e monitorizadas por agrónomos que eram funcionários da Junta de Exportação do Café, uma estrutura estatal de intervenção económica criada pelo Império Português em 1940. Esta dimensão tecnológica (e tecnopolítica) da história do Robusta angolano é discutida na segunda parte da dissertação, na qual se procura contextualizar esta junta imperial (marketing board, na literatura anglo-saxónica) e discutir o papel do Brasil e dos Estados Unidos no processo de estandardização. Defende-se, por exemplo, que este processo foi profundamente negociado por agrónomos portugueses e associações de investidores ligadas à indústria norte-americana da torrefacção no quadro de uma “hegemonia coproduzida.”
No que diz respeito à relação ciência-império este trabalho aponta também para uma revisitação historiográfica. Uma primeira conclusão sublinha a importância de estudar as prácticas de reconhecimento territorial, e em particular as de reconhecimento botânico e agrícola, defendendo-se que para discutir a fundo a relação ciência-império, e sobretudo no contexto colonial africano, precisamos de nos afastar de projectos concebidos de-cima-para-baixo, e de colocar a nossa atenção naqueles que nascem no terreno e que resultam de relações de poder mais difusas e subtis – por outras palavras, naqueles projectos que são políticos antes de serem uma ideia política. A segunda conclusão remete para a relação entre ambientalismo e colonialismo, tema amplamente discutido na historiografia internacional e ainda pouco explorado na historiografia do Império Português, mostrando-se como certos princípios ambientalistas permitiram ao império fazer uma gestão adequada dos seus recursos e assim garantir a longevidade do seu domínio. Finalmente, uma terceira conclusão aponta para a necessidade de uma história da ciência que estude com igual afinco as práticas científicas e a economia política dos estados, exercício particularmente conseguido no estudo sobre a Junta de Exportação do Café e sobre o contexto bifronte em que operavam os cientistas que para ela trabalhavam: por um lado, ajudando a consolidar o Império Robusta, que apesar de incluir um grande número de africanos favorecia acima de tudo os grandes produtores e capitalistas angolanos que dependiam inteiramente das práticas de trabalho forçado; e por outro, imaginando formas alternativas de produção baseadas em pequenas unidades localizadas no Planalto Angolano, alimentadas por “mão de obra branca” e por um outro tipo de café, o Arábica – o sonho de substituir o Império Robusta por um Império Arábica e que nunca se concretizaria.
Resumo da dissertação de doutoramento de Maria do Mar Gago, historiadora da ciência e da tecnologia interessada na história global das culturas agrícolas. Investigadora associada do ICS-ULisboa, tem trabalhado na intersecção da história da ciência e da tecnologia, história ambiental, história colonial e história das relações internacionais. É licenciada em Biologia, mestre em História e Filosofia das Ciências e doutora em História no âmbito do programa doutoral História: Mudanças e Continuidades num Mundo Global (PIUDHist). A dissertação, intitulada Robusta Empire: Coffee, Scientists and the Making of Colonial Angola (1898-1961), foi orientada por Tiago Saraiva (Drexel University, US) e Staffan Mueller Wille (University of Exeter, UK).