P-A-R-A-O-I-D-É: A poesia moderna como prática anticolonial
De Patrícia Lino (UCLA)
A alma do homem português é universal
tão universal que
só ele a entende
ANTICORPO. CAP. III
1. Παρῳδία
No que respeita à organização dos géneros literários, a disposição hierárquica dos textos não está apenas ligada à qualidade literária do texto propriamente dito, mas à estrutura a que, desde do início da sua criação, ele deverá pertencer. Entre os géneros literários, que se dividem aristotelicamente em duas categorias, tragédia e comédia ou trágico e cómico, constam o poema épico, a sátira ou a paródia. Paraoidé significa, em termos literais, um canto (oidé) paralelo (para). Pode também significar um canto que se faz contra (para) ou que existe perante (para) outra coisa. Por formar-se a partir do texto original, o objeto paródico ou a reprodução do original foi considerada inferior. Assenta, além disso, na gargalhada, fenómeno que, para os Antigos, ficava atrás da seriedade de géneros como a épica.
2. A paródia é a paródia do entendimento redutor da paródia
A paródia não se livrou do rótulo por séculos. A intimidade com que se apropria do original (aqui, em sentido amplo) custou-lhe um lugar no topo da hierarquia. Ao contrário da sátira, que satiriza uma ideia ou comunidade gerais, o exercício paródico é cruelmente específico. E, por ser considerada inferior, a paródia consiste sempre numa paródia do entendimento redutor de si mesma.
O valor do exercício paródico, uma apropriação pessoal e direta, determina-se a partir da sua competência. Para que a paródia resulte, o texto original tem de ser conhecido do(a) leitor(a), porque a paródia, além de ser um discurso duplo (cópia e negação do parodiado), é a total inversão do código estabelecido pelo original.
3. A gargalhada antinestesiante
A gargalhada suscitada pelo sistema, reguladora e purgativa, não partilha, com a gargalhada paródica, uma função cáustica e ferozmente crítica. Ao contrário da primeira, a gargalhada paródica, corrosiva e desconfortável, escapa ao controlo do(a) leitor(a). Escapa, na verdade, ao controlo do(a) autor(a).
4. ANTICORPO. A Paródia do Império Risível (2019-2020)
O ANTICORPO, um livro audiovisual, paródia do discurso colonial português, foi antecedido por outros trabalhos. Entre eles, o poema visual PORTUGAL, o poema miniatura MUSEU DOS DESCOBRIMENTOS: PORTUGAL 2019 e o livro O KIT DE SOBREVIVÊNCIA DO DESCOBRIDOR PORTUGUÊS NO MUNDO ANTICOLONIAL. A dimensão poética crescentemente interdisciplinar destes textos põe em causa a forma tradicional do poema, que não deixa de ser, ainda que pontualmente, o modelo usado pelo discurso colonial e colonizador. Por outras palavras e sob a forma de pergunta: o poema interdisciplinar paródico anticolonial amplia as dimensões do poema tradicional?
5. O corpo invisibilizado
O ANTICORPO, negação do corpo individual (o corpo invisibilizado pela criação do império ou de um corpo coletivo) e, ao mesmo tempo, o corpo paralelo que se rebela, que existe contra, forma-se a partir da combinação do texto, do som e da imagem. O processo transdisciplinar do ANTICORPO desenvolve-se na seguinte ordem: texto, adaptação musical do texto, adaptação do texto musical à imagem, montagem.
6. A arte de ser coerentemente português
Poderíamos afirmar que o discurso colonial português, que tem muitos rostos, níveis e ferramentas, é uma paródia de si mesmo. O homem português colonial existe coerentemente dentro de Portugal, um país que, por sua vez, existe para dentro, olhando para si mesmo; mais concretamente, para o que foi.
Parece-me, além do mais, que a seriedade do discurso do homem português colonial parte de algumas ideias centrais que mais não são do que o reflexo de um complexo de inferioridade com consequências devastadoras: o egocentrismo exacerbado, a ilusão do direito à propriedade, o controlo, e por isso, a necessidade de hierarquizar os corpos, o conhecimento e as disciplinas; a heteronormatividade ou a masculinidade tóxica, o branqueamento do mundo ou o engrandecimento ou embelezamento da violência sobre o Outro.
7. O humor empático-crítico
O ANTICORPO, um livro audiovisual desconfortável e desagradável, reúne as palavras, as imagens e os sons que não querem ser vistos nem escutados pela lógica colonial e assenta num exercício de empatia, em que a empatia e o cómico se confundem. A confusão é necessária, pois, perante o pensamento colonial anestésico, o riso faz mais do que suscitar o caos. Dá a vê-lo.
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Patrícia Lino (Portugal, 1990) é professora universitária e poeta. Ensina literaturas e cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California, Los Angeles). É a autora de Antilógica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Cínica (2019). Dirigiu Vibrant Hands (EUA, 2019) e Anticorpo. Uma Paródia do Império Risível (EUA, 2019). Publicou, apresentou e expôs ensaios, poemas e ilustrações em mais de cinco países. A sua investigação centra-se, neste momento, na poesia contemporânea, culturas visual e audiovisual, paródia e anticolonialismo, intermedialidade e cinema luso-brasileiro. É editora da revista de poesia e crítica Virada.