Trabalho, Música e Colonialismo no nordeste de Angola através de uma fotografia de 1954

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Fotografia à guarda da Universidade de Coimbra, comentada pela antropóloga Cristina Sá Valentim, a convite da equipa editorial

Em maio de 1954, a caravana da Missão de Recolha de Folclore Musical da Diamang (Companhia de Diamantes de Angola) parte do Dundo em direção ao Lóvua, no extremo norte do distrito da Lunda, circunscrição do Chitato, atual província da Lunda Norte, onde grava cerca de 200 canções “tradicionais” e “autênticas” de origem Cokwe. Inicia-se assim a quinta campanha de recolha liderada pelo funcionário da Companhia, Manuel Pinho Silva, quatro anos após o arranque da Missão no leste angolano junto daqueles e daquelas que tinham o estatuto sociojurídico de indígenas, integrando a mão-de-obra contratada, sob coação, para as minas e lavras da empresa diamantífera.

O processo da recolha das canções obedeceu a uma logística em muito semelhante ao processo do recrutamento de trabalhadores contratados: ainda antes ou já no Posto Administrativo, Pinho Silva contactava com o administrador da Circunscrição respetiva para ter autorização para a recolha. Depois de a obter, era também ele que contactava os Chefes de Posto e os Secretários. Estes, por sua vez, auxiliados pelos cipaios, polícia colonial com elementos indígenas, pediam aos Sobas que reunissem as populações das suas aldeias para os trabalhos da Missão.

Cada recolha era feita a partir de um acampamento que a Missão montava nas proximidades de um sobado e que marcava, como a um território conquistado, com a Bandeira de Portugal. O acampamento servia de base para as recolhas que, em norma, demoravam entre três a sete dias numa área de trabalho que podia abranger cerca de 30 km de extensão e implicar longas e difíceis deslocações. Sempre que não era possível a caravana aceder às aldeias devido a acessos intransitáveis a veículos motorizados, as comunidades deslocavam-se até ao acampamento da Missão para se proceder à “convocação de indígenas”. Nessas situações, os Chefes de Posto pediam aos Sobas que trouxessem as pessoas que soubessem cantar e tocar, acompanhadas dos instrumentos e escoltadas pelos cipaios que as levavam até aos acampamentos onde permaneciam como uma “grande concentração de povos de aldeias distantes”. Durante estas “concentrações de indígenas”, que podiam reunir até cerca de uma centena de pessoas de várias origens étnicas, procedia-se à “escuta de indígenas”.

Após muitos ensaios, nomeadamente para a afinação de coros, eram gravadas canções interpretadas por solistas e tocadores entretanto selecionados. As gravações de canções eram feitas no próprio dia ou no dia seguinte, e no final das mesmas eram distribuídos “matabichos” (refeições/ceias). As gravações iniciavam ao início da noite, mais ou menos a partir das 17 horas, ou a seguir ao jantar, nos serões, de forma a evitar as horas de maior calor, demorando cerca de quatro a cinco horas. Caso os/as intérpretes não tivessem forma de regressar a pé às suas aldeias, caso fosse possível, a Missão oferecia boleia. Os e as participantes nas recolhas por norma eram “gratificados” com dinheiro, géneros alimentares e bens, podendo receber roupa, lenços, alimentos, colares, pulseiras, brincos, máquinas de barbear, pífaros, lanternas ou tabaco. Também os indígenas “assimilados” ou “civilizados” e os Chefes de Posto que mais auxiliassem os trabalhos da Missão, iam recebendo presentes para si e para a sua família. As gravações de canções também ocorreram durante os trajetos dos recrutamentos de trabalhadores contratados para a Companhia, que seguiam das aldeias até às minas, gravando as designadas “canções no trabalho”.

Durante a quinta campanha da Missão, entre maio e dezembro de 1954 no Lóvua, o Soba Canzunda foi um dos Sobas que auxiliou a Missão nos trabalhos de recolha. Canzunda olha de frente para a máquina fotográfica Paillard, funcionando com rolos de 16mm, enquanto aguarda sentado, com a sua população atrás de si, pelo início dos trabalhos de audição das melhores vozes e dos melhores tocadores do seu sobado. Esta fotografia, para além de constar no relatório da quinta campanha, foi publicada em formato de livro (escrito com texto em inglês e português) em 1961, inserido na série das Publicações Culturais da Companhia de Diamantes de Angola. O livro tem em anexo as fitas magnéticas referentes às canções Cokwe recolhidas na região do Lóvua e circulou a nível nacional e internacional, tendo sido oferecido pela Companhia e pelo Museu do Dundo às mais prestigiantes instituições culturais na Europa, EUA, Brasil e África do Sul.

Esta fotografia pode ser consultada no website Diamang Digital e pertence ao fundo do arquivo fotográfico dos Serviços Culturais da Diamang.

Deixamos também o registo documental da sua prova no arquivo, indicando a sua publicação no 5º relatório de 1954, e a imagem da dita página [p. 2].

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Cristina Sá Valentim é antropóloga, doutorada em Sociologia (CES-UC), especialização em Estudos Pós-Coloniais, com a tese Sons do Império, Vozes do Cipale. Canções tucokwe, Poder e Trabalho durante o colonialismo tardio na Lunda, Angola (2019).  É responsável pela manutenção em backoffice do website Diamang Digital.  Atualmente, é bolseira de pós-doutoramento no Centre for Functional Ecology – Science for People & the Planet (CFE) da Universidade de Coimbra, e investigadora colaboradora no Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança (INET-md), pólo da Universidade de Aveiro.

Escreveu este texto a convite da equipa editorial do site-blog do Grupo de Investigação Impérios, Colonialismo e Sociedades Pós-Coloniais; estimulado pelo uso desta fotografia como imagem do cartaz de um evento académico, Conferência Fotografia, História e Arquivo, organizado pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, que contou com a presença de investigadores deste Grupo de Investigação, Inês Ponte, Filipa Lowndes Vicente e Ana Gandum.