Exposições de seres humanos na Europa dos séculos XIX e XX
Filipa Lowndes Vicente, ICS-ULisboa.
Em 1810, Saartjie Baartman, uma mulher originária da África do Sul, foi exibida em Londres, para regozijo tanto de um público popular ávido de novos espectáculos como de uma comunidade científica interessada na anatomia da diferença humana. Saartjie Baartman, a mulher “objecto de exposição”, perdeu o direito à identidade do seu nome próprio, passando a ser conhecida como “a Vénus Hottentote”. Tratava-se de uma das primeiras “indígenas”, na expressão da época, a dar maior visibilidade a um fenómeno que marcou a história da Europa e dos Estados Unidos durante o século XIX e primeiras décadas do século XX, e que foi denominado pela bibliografia crítica das últimas décadas de “jardins zoológicos humanos” (zoos humains, em francês, human zoos, em inglês).
Podemos perguntarmo-nos, no entanto, se faz sentido usar uma expressão que perpetua ela própria a violência intrínseca ao acto de expor seres humanos perante o olhar de outros seres humanos, em circunstâncias de grande desigualdade. Desde o século XV que mulheres e homens – e também animais exóticos – provenientes de lugares fora da Europa eram “exibidos” nas cortes ibéricas, mas faziam-no perante uma audiência reduzida e circunscrita, bem distinta das multidões observadoras, em espaços de lazer e entretenimento, típicos do século XIX. O século XIX consolidou esta alteração das práticas de exibição de seres humanos de espaços privados para espaços públicos. Também assistiu ao desenvolvimento de uma nova cultura visual, bidimensional, que, através das novas técnicas de reprodução de imagens, multiplicava a difusão do evento – em postais fotográficos ou litografias de periódicos.
De Londres para Paris, a “Vénus” percorreu o circuito dos espaços de espectáculos de massas da época, ao mesmo tempo que foi reproduzida em gravuras caricaturais. Depois da sua morte, em 1815, o corpo de Saartjie Baartman continuou sujeito não só ao escrutínio do olhar europeu, como aos instrumentos científicos do conhecido naturalista Cuvier, que a dissecou no seu gabinete anatómico em Paris. Fragmentado quer em moldes “científicos”, quer pela autópsia a que foi sujeito, só em 2002 o corpo musealizado de Saartjie regressou à África do Sul. Durante esse processo, tornou-se um corpo politizado, símbolo de práticas perpetradas por poderes coloniais, e reivindicado pelos diversos grupos que lhe quiseram dar um enterro religioso e erigir-lhe um monumento – espaços de memória muito distintos do museu europeu onde o seu corpo esteve guardado durante quase dois séculos. Objectificados enquanto parte integrante de coleções, museus ou centros científicos europeus, os corpos de sujeitos colonizados são uma ínfima parte da vastíssima quantidade de “espólios” constituídos no passado colonial. Num presente pós-colonial em que os lugares e a posse das “coisas” são alvo de escrutínio crítico e contestação crescente, estes “corpos” tornaram-se especialmente simbólicos da violência indissociável a tantas apropriações coloniais.
Na década de 1840, do outro lado do Atlântico, mais precisamente no centro de Manhattan, em Nova Iorque, Phineas Barnum começou a organizar espectáculos de pessoas que se denominavam freaks. Esta exibição de seres humanos considerados monstruosos tanto podia incluir pessoas condenadas por crimes, pessoas com limitações físicas ou mentais, como aquelas provenientes do mundo não-ocidental. Ou seja, todos aqueles seres humanos que, de alguma forma, transgrediam as convenções da “normalidade” socialmente estabelecida. Ao carácter circense dos concorridíssimos eventos, o empresário acrescentou uma faceta científica, sob a forma de conferências e textos escritos. Se este tipo de espectáculo itinerante, de feira ou de taberna, já existia desde o século XVIII, foi com Barnum que se profissionalizou, alcançando imensa popularidade. Os paralelos entre este fenómeno e o da exposição de “nativos” já foi feito numa grande exposição organizada pelo Musée du Quay Branly em 2011: Human Zoos. The Invention of the Savage, com catálogo editado por Pascal Blanchard, Gilles Boetsch e Nanette Jacomijn Snoep (Paris: Musée du Quai Branly e Actes Sud, 2011). A exposição deu continuidade a um projeto de investigação que começara mais de 10 anos antes e que já envolvera alguns dos mesmos investigadores. Desse projeto resultou um livro com a participação de múltiplos autores e com o objectivo de analisar o fenómeno em diferentes contextos geográficos ocidentais (Portugal não está incluído): Nicolas Bancel, Pascal Blanchard, Gilles Boetsch, Éric Deroo, Sandrine Lemaire (dir.), Zoos humains: de la Vénus Hottentote aux Reality Shows (Paris: Éditions La Découverte, 2002).
Histórias individuais
O que é que acontecia a estas pessoas-“objectos de exposição” quando deixavam de o ser? Se algumas morriam no exercício, outras passavam a viver situações de miséria, ou regressavam aos seus lugares de origem, inexoravelmente marcadas pela sua passagem pela “civilização”. Um caso conhecido há poucos anos é o dos bisavós do futebolista francês Christian Karembeu (n. 1970, Nova Caledónia). Ambos foram para Paris em 1931, para serem exibidos ao lado de palhotas montadas na Exposição Colonial Internacional que nesse ano teve lugar na cidade. A centena de habitantes proveniente da Nova Caledónia constituiu uma das principais atracções. Mais tarde, e quando grande parte dos crocodilos que os acompanhavam na encenação sucumbiram no seu novo habitat, o Jardim Zoológico de Hamburgo ofereceu-se para repor os crocodilos em falta, a troco da vinda de 60 indivíduos da Nova Caledónia, como nova atracção temporária do jardim zoológico.
O conhecido futebolista narra a humilhação sentida pelos seus antepassados regressados a casa. Exposta e fotografada, a comunidade teve dificuldade em assimilar o trauma da sua passagem forçada pela Europa. De qualquer forma, as vozes que nos chegaram dos expostos são raras e pontuais – a sua função era serem vistos (ao vivo ou em fotografias), não ouvidos. As barreiras que os separavam dos seus observadores eram dificilmente ultrapassáveis, mesmo depois da exposição. Por exemplo, quando várias das 260 pessoas originárias de um Congo recém-colonizado por Leopoldo II morreram no museu-jardim colonial de Tervuren (Leuven, Bélgica) onde estavam expostas, os habitantes da aldeia vizinha não aceitaram que os seus corpos fossem enterrados no cemitério local. Debaixo de terra não havia grades de separação (Jean-Pierre Jacquemin, “Les Congolais dans la Belgique “impériale”” in Zoos humains, pp. 254-55).
Quando o nativo morria em palco, como tantas vezes aconteceu devido à brutalidade das mudanças climatéricas, das doenças europeias e das miseráveis instalações que frequentemente lhe eram destinadas, era a vez de o médico assumir o seu papel de cientista para vir observá-lo mais de perto. Subjacente a este olhar da ciência estavam as hierarquias raciais estabelecidas por nomes como Darwin (1809-82). Os zoos humanos constituíam a prova que faltava para reconfirmar teorias evolucionistas que identificavam uns como mais humanos do que outros. Para muitos dos espectadores de Oitocentos ou de começos de Novecentos, os exibidos não eram considerados humanos e não mereciam, portanto, a atenção de um certo discurso defensor dos direitos humanos que começava a proliferar nesta altura e que já tinha uma longa história quando relacionado com ideias abolicionistas. Protestos contra os “zoos humanos” também se fizeram sentir, mas foram surpreendentemente pontuais até meados do século XX.
As exposições de seres humanos e o colonialismo europeu
Em 1877, o jardim zoológico e botânico tropical de Paris (em francês usava-se a palavra acclimatation, para nomear os jardins onde se plantavam espécimes provenientes de outras regiões do mundo) anunciava a sua nova atracção – um grupo de animais exóticos acompanhado por “indivíduos não menos singulares”. Esta exposição antropo-zoológica, como foi apelidada pelo seu organizador, Carl Hagenbeck (1844-1913), atraiu milhares de pessoas e resolveu de vez os problemas financeiros daquele zoo, que passou a ser um dos principais locais europeus de exposição de indígenas. Até à Primeira Guerra Mundial, passaram por lá inúmeros grupos de pessoas provenientes das geografias mais remotas. Os animais que tinham dado nome a este espaço público oitocentista passaram a ser um simples adereço das encenações mais atraentes que eram proporcionadas pelos “malabares”, “aborígenes”, “amazonas” ou simplesmente “selvagens”, que durante meses faziam do Bois de Bologne parisiense a sua morada.
Para tornar mais real ao visitante esta viagem metafórica mulheres, homens e crianças, habitavam um espaço artificial feito de palhotas e lagos, plantas exóticas e artesanato, onde deviam levar a cabo as suas tarefas diárias sempre sob o olhar do público. Como a monotonia do quotidiano nem sempre foi considerada suficientemente espectacular, organizavam-se eventos especiais: desde casamentos entre nativos, até aos mais comuns, cânticos, danças (sempre ao ritmo intrépido de tambores) ou desfiles. A admirável destreza física dos homens provenientes da região indiana do Malabar, que surpreendiam o público com os seus “malabarismos” (precisamente, uma palavra que ganhou uso corrente), foi uma das atracções específicas. Alheios ao elemento espiritual e religioso de muitos destes desafios aos limites do corpo humano, os observadores concentravam-se nas características circenses da encenação. Uma grade de ferro ou de arame, tal como se pode observar em vários postais fotográficos, servia de barreira entre dois mundos bem definidos – o dos observadores e o dos observados, o dos Europeus e os dos não-europeus, dos “civilizados” e dos “primitivos”, o da normalidade e o da diferença, o dos colonizadores e o dos colonizados, o daqueles que estavam vestidos e o daqueles que se exibiam quase nus.
Entre as duas guerras dá-se uma clara mudança nas formas de exposição de nativos em espaços públicos. De facto, na Exposição Colonial de Paris de 1931, principal modelo da Exposição Colonial do Porto de 1934 e de muitas outras que, por esses anos, tiveram lugar noutras cidades da Europa, multiplicaram-se os modos de expor pessoas, por vezes também no sentido de não “nativizar” os nativos, mas pelo contrário de torná-los mais próximos do padrão do colonizador.
Viajantes sem narrativas de viagem
A enorme diversidade de casos específicos coloca problemas gerais e é atravessada por alguns temas recorrentes. Em primeiro lugar, a viagem: uma das metáforas mais usadas para descrever a experiência de observar pessoas em exposição, é a da possibilidade de viajar pelo mundo perto de casa. Por outro lado, os seres humanos expostos são sempre viajantes, embora mais próximos dos emigrantes, dos exilados ou dos contemporâneos sans papier ou refugiados, do que dos turistas europeus do século XIX ou dos viajantes provenientes das elites indianas ou africanas que também circularam pela Europa no mesmo período. São viajantes que não escrevem diários e que poucas marcas deixam da sua passagem. E sobretudo que têm pouco ou nenhum controlo sobre a sua viagem ou sequer sobre o facto de terem partido. Escrever a sua história não é fácil porque a sua perspectiva, experiência e subjectividade individuais raramente ficaram registadas em fontes escritas na primeira pessoa. Implica sempre ir à procura das fontes produzidas por quem os representou – quem escreveu sobre eles ou os fotografou. No entanto, e como têm notado recentemente teóricos da fotografia como Elizabeth Edwards, Christopher Pinney ou Ariella Azoulay, o evento fotográfico pode também ser um encontro e uma negociação, onde o “representado” não é um mero “retratado” . Na fotografia, muitos destes viajantes encontram a subjetividade possível.
Torna-se pertinente colocar esta visibilidade expositiva ao lado de outras formas de tornar visíveis, na Europa colonizadora, os seres humanos não-europeus. O que a segunda metade do século XIX veio trazer foi a suposta proximidade desta diferença através de uma série de recursos em formato visual bidimensional. As viagens visuais tornam-se acessíveis a um número muito maior de pessoas e são proporcionadas através de inúmeros formatos: da hiperrealidade dos corpos presentes em três dimensões em exposições até à multiplicação de uma cultura visual bidimensional, onde a fotografia, a litografia e, já depois no fim do século, o postal ilustrado, transportam “o africano”, “o indiano” ou, simplesmente, “o indígena”, para o interior das casas ocidentais, o espaço privado e doméstico, ou para o espaço público urbano. A escrita acompanha esta viagem imaginária com a popularização de relatos de aventuras na selva e heróis capturados por tribos canibais, sobretudo na profíqua produção editorial infantil e juvenil, em várias línguas.
A estreita ligação entre ciência e cultura popular é outra das ideias centrais para se compreender os “zoos humanos”. As fronteiras entre uma e outra cruzam-se constantemente, tornando difícil uma divisão entre a exibição colonial do indígena por razões de conhecimento científico, e a sua mera exploração comercial num contexto de entretenimento. Pessoas de uma mesma “tribo” podiam passar uns meses num jardim zoológico, para depois ocupar o seu lugar no pavilhão nacional de uma exposição universal,ou seguir para os teatros de província repletos de um público ávido de visões exóticas. De igual modo, uma pessoa em exposição ficava sujeita aos olhares mais diversos – da família popular a viver o seu Domingo de lazer, ao antropólogo que assim superava as dificuldades de viagens inóspitas que uma observação directa exigiria. O “nativo” no centro de Amesterdão ou de Paris também foi medido, fotografado e classificado pelo discurso nascente da antropologia. Por vezes, o antropólogo também colaborava com o empresário que transportava os “indígenas” do seu local de origem gerindo as suas tournées europeias ou americanas, outorgando-lhe um certificado de autenticidade. Com o carimbo legitimador do especialista, os indígenas “certificados” distinguiam-se dos seus falsos congéneres que também estavam presentes em diversos espaços de exposição, em encenações teatralizadas.
A grande maioria dos casos de exposição de seres humanos é indissociável de relações coloniais, com tudo o que estas significam em termos de racismo, desigualdade e violência, mas alguns casos subvertem a norma. Também existem ambiguidades nestas relações que nem sempre se podem deter na simplicidade do binómio explorador/explorado: dos agentes que procuravam melhorar as condições de vida dos seus empregados, ao ex-indígena que se tornava, ele próprio, num próspero organizador de exposições de outros indígenas.
A fotografia a multiplicar o efeito das exposições
A fotografia, cuja vulgarização coincidiu com a proliferação deste fenómeno, converteu-se no instrumento de prova visual aliado destas teorias. Tal como as próprias encenações que reproduzia, a imagem fotográfica criava a ilusão da autenticidade necessária ao discurso científico. Assim, além dos inúmeros tratados científicos escritos acerca destes indivíduos onde o nome próprio era substituído pelo tipo a que pertenciam, a fotografia surge como a principal responsável pela memória destes eventos – e muitas vezes era mesmo o souvenir que os visitantes levavam para casa depois da experiência (v. fig. 6). Em muita da produção fotográfica desta altura é difícil distinguir a imagem tirada num jardim parisiense ou no habitat de origem dos retratados. Os fotógrafos procuravam esse efeito. Franz Boas (1858-1942), por exemplo, antropólogo conhecido pela forma como questionou pressupostos muito enraizados de superioridade e inferioridade entre os seres humanos, ao publicar um estudo sobre o cerimonialismo entre os Kwakiutl, fotografou-os durante a Columbian Exposition de 1893.
A exposição de grupos de “nativos”, à volta de 1900, em Paris, foi produzindo várias séries de postais fotográficos: em primeiro lugar, porque pessoas de cada nova tribo que chegava ao Jardin d’Acclimation de Paris, por exemplo, eram fotografadas para aparecer nos postais que depois os visitantes adquiriam. Dessa produção, podemos estabelecer uma divisão, entre aqueles postais que deixam antever o público europeu do outro lado das barreiras, e aqueles que convocam um olhar ambíguo, ignorando todos os sinais do local onde se encontra o objecto de exposição. A legenda do postal diz que a imagem é em Paris, mas o que é visível reproduz “a África” ou “a Ásia” que se quer mimetizar. Tiradas de dentro dos recintos por fotógrafos que saltam as grades, ou do lado de fora, as fotografias, impressas aos milhares, transformam-se em sinais permanentes de espectáculos que se caracterizavam pela sua efemeridade. As representações bidimensionais dos postais fotográficos contribuíram tanto como as próprias exposições para divulgar a imagem do colonizado no espaço da cultura visual do colonizador.
Se o fotógrafo, que muitas vezes era também o antropólogo, o geógrafo, o médico, o militar, ou o membro da administração colonial, anónimos cidadãos de uma nação quase sempre colonizadora, acediam como observadores – através das exposições ou da fotografia – aos valores de supremacia colonial, verificando visualmente a sua existência. O cidadão comum pouco ou nada viajaria até às colónias, mas lia e, sobretudo, via muitas provas da sua existência: em jornais, livros de viagem populares ou eruditos, fotografias, gravuras, cartazes, exposições universais e coloniais e, já no fim do século XIX, em postais fotográficos.
A fotografia sob a forma do postal fotográfico multiplicou, e banalizou, estas imagens. O que é que estes postais, de exposições em Paris ou em tantos outros lugares, mostram? A nudez assexuada do “bom selvagem” rousseauniano ou o erotismo para o coleccionador de postais europeu? A imagem real dos usos e costumes de terras distantes ou a possibilidade de ver o corpo sem ter de o despir? Quando o traje da mulher não ocidental lhe cobria o corpo, então o fotógrafo, que era quase sempre um homem, podia mesmo despi-lo para melhor satisfazer os olhares e as expectativas daqueles que iriam adquirir os postais ou ver as exposições (mesmo que as baixas temperaturas fossem uma crueldade ou a nudez ferisse o seu pudor, como aconteceu nalguns casos).
A fotografia pode servir aqui de metáfora para um outro aspecto inseparável deste fenómeno: o modo como, no contexto das exposições, o homem encontra legitimidade para olhar para o corpo de mulheres que são quase sempre negras e originárias de territórios colonizados. Nas exposições, como na fotografia, a legitimidade científica da antropologia ou dos conhecimentos coloniais serviu para que os corpos de mulheres negras pudessem estar acessíveis, a homens, mas também a mulheres e crianças, de um modo que não acontecia com os corpos de mulheres brancas que, quando erotizados, permaneciam no campo visual restrito e masculino da pornografia.
Se as exposições de seres humanos são indissociáveis do contexto do colonialismo ocidental, os estudos sobre este fenómeno reflectem muitas vezes sobre a sua ressonância contemporânea, nomeadamente nos reality shows. Apesar de este tipo de programas ser muitas vezes apresentado como reflexo de uma cultura contemporânea de sobreexposição da intimidade, a ponto de se considerar que as fronteiras da dignidade humana estão a ser ultrapassadas de uma forma antes nunca vista, os estudos sobre os “zoos humanos” e os circos mostram como a exploração exibicionista de seres humanos tem uma longa história. De facto, seja em relação a programas televisivos em que a intimidade dos sentimentos é devassada, ou a outros tipos de espectáculo que desumanizam e objectificam a identidade de quem é observado, o desejo do olhar do público serviu, e serve, muitas vezes para desresponsabilizar eticamente aqueles que detêm o poder sobre o visível e sobre o “espectáculo”, tal como o teorizou Guy Debord.
Hoje, os eventos designados como “zoos humanos” subsistem impressos na materialidade visual de postais fotográficos que tendo sido produzidos no passado, ainda existem no presente. Em lojas de postais, feiras da ladra e velharias, ou reproduzidas no vasto comércio de postais online, a sua abundância é reveladora da popularidade destes eventos. As imagens de seres humanos sem nome e sem identidade, legendadas com a sua origem geográfica e, por vezes, a cidade onde estavam expostos, multiplicaram, em 1900 como agora, o efeito das exposições muito para lá do tempo e do espaço onde tiveram lugar. Tornaram-se a prova do encontro fotográfico. Hoje, estão sujeitas ao escrutínio crítico de textos académicos e de exposições que as analisam, questionam e contextualizam historicamente, tal como identificam as hierarquias, desigualdades, racismo e violência imbuídas em tantos da experiência destes encontros de corpos e olhares num mesmo espaço, mas também formas de recuperar a sua subjectividade e individualidade.
Publicado no blog-site Grupo de Investigação Impérios, Colonialismo e Sociedades Pós-Coloniais do ICS-ULisboa, https://gi-imperios.org/blog/filipa-vicente-exposicoes-seres-humanos-europa-seculo-xix-xx, 2019-09-17.
Uma primeira versão foi publicada, em 2003, como recensão a Zoos humains: de la Vénus Hottentote aux Reality Shows (Paris: Éditions La Découverte, 2002), in Estudos do Século XX, n. 3, 2003, pp. 389-95.
Agradeço à Inês Ponte, ao José Miguel Ferreira, ambos meus colegas no ICS-ULisboa, e ao Sílvio Marcus de Souza Correa, da Universidade Federal de Santa Catarina, a leitura, sugestões e críticas que tanto beneficiaram este texto.