O Controle do Fluxo das Cartas e as Reformas de Correio na América Portuguesa (1796-1821)

O Controle do Fluxo das Cartas e as Reformas de Correio na América Portuguesa (1796-1821)

Mayra Calandrini Guapindaia, ICS-ULisboa

A tese teve o objetivo investigar o papel das reformas de Correio nos planos políticos e administrativos da Coroa portuguesa nos últimos anos do século XVIII, tendo como objeto de estudo o caso específico da implantação na América portuguesa. Este foco de análise foi escolhido como forma de compreender até que ponto as medidas reformistas surtiram os efeitos desejados pela Coroa no espaço colonial. Isso por que as próprias lacunas das normas centrais e os contextos locais não permitiram um processo de centralização coeso, no qual existisse um sistema único e integrado de Correios. Os ideais mais antigos a respeito da organização do fluxo das cartas por outras instituições sociais, para além os correios formais, ainda subsistiam nas formas de governar dos agentes da Coroa no além-mar.

Duas questões perpassaram a análise ao longo de toda a investigação. Primeiro, levou-se em consideração como o envio de correspondências passou, por um lado, a ser visto como um processo que deveria ser controlado pela Coroa. Em segundo lugar, foi importante considerar que o traslado postal continuou a ser compreendido por muitos agentes da monarquia em solo americano como algo que poderia ser gerido sem qualquer interferência de um aparato administrativo controlado pelo centro. Ou seja, na contrapartida de um movimento centralizador, atuava e resistia outro, muito mais antigo, nos quais os agentes locais clamavam uma espécie de autorregulação do fluxo das cartas.

Até 1798, o sistema de correios da monarquia portuguesa seguiu um modelo específico: o direito de transportar cartas e recolher as taxas referentes ao serviço estava nas mãos da família Gomes da Mata, que comprou o ofício de Correio-mor em 1606 e o de Correio-mor das cartas de Mar em 1657. Contudo, em fins do século XVIII essa estrutura foi extinta, e os correios, tanto em Portugal quanto nos domínios ultramarinos, sofreram modificações em seu aparato administrativo. Em 1797, as funções do ofício de Correio-mor foram incorporadas à alçada direta da Coroa. A partir de então, os trâmites postais não foram mais controlados por uma família que possuía os direitos de prestação de serviço. No lugar do antigo sistema, surgiu outro, na qual a circulação de cartas seria controlada diretamente pela Coroa. Isso significou também que a taxa referente ao transporte de missivas, denominada porte, passou a configurar como receita régia.

Rodrigo de Sousa Coutinho. Biblioteca Nacional de Portugal (Acervo Digital). Cota E-4695-P.

A reforma dos correios fez parte de um conjunto mais amplo de ações administrativas, levadas a cabo em fins do século XVIII e executadas pelo Ministro da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho. O principal propósito dessas transformações era recuperar a economia e as receitas fiscais de Portugal, que se encontrava financeiramente desgastado devido ao alto gasto com questões militares, fruto do envolvimento na guerra com a França. As medidas de D. Rodrigo foram voltadas para questões financeiras e econômicas e, nesse quesito, os correios foram considerados como um ponto importante da mudança. O sistema postal desempenharia papel triplo, todos ligados a pontos específicos dos planos do ministro: encurtaria o tempo da comunicação administrativa, agilizando a governabilidade; promoveria o comércio, garantindo o envio eficiente da correspondência mercantil e também de mercadorias; e seria fonte de renda para o Erário Régio, pois as cartas eram passíveis de taxação fiscal.

Uma das primeiras ações de D. Rodrigo ao assumir a Secretaria da Marinha e Ultramar foi a inauguração do Correio Marítimo entre Reino e domínios. Essa ação possuiu caráter inovador, pois, até aquele momento, todas as tentativas de implantar correios na América portuguesa, marítimos ou terrestres, foi frustrada. Em conjunto às ligações marítimas, também foram tomadas uma série de medidas para a construção de correios internos na América portuguesa. Em paralelo, sob a alçada de outra secretaria (a do Ministério do Reino), os correios interiores de Portugal também foram modificados. Portanto, a reforma dos correios alcançou tanto o Reino quanto o ultramar, configurando-se como um único projeto que buscava resultados comuns em todo o Império português.

As reformas de correio seguiram um conjunto teórico e prático específico, baseado em modelos de outras monarquias europeias e em reformas políticas, fiscais e econômicas caras à Coroa portuguesa em fins do século XVIII, mas os resultados alcançados em solo americano não seguiram necessariamente um padrão centralizador. Os agentes regionais responsáveis por colocar as reformas em prática, embora levassem em consideração as normas ditadas pela Coroa, nem sempre as seguiram à risca. Até porque, muitas vezes, as diretrizes eram vagas e abriam margem de manobra para a tomada de decisões próprias.

Por um lado, os agentes da Coroa envolvidos nesse processo, que, neste caso, eram os governadores e as Juntas da Real Fazenda, foram responsáveis por acatar os planos do centro, mas aplicando-os muitas vezes de acordo com a realidade local, o que gerou arranjos variados para a implantação do novo aparato administrativo. Por outro, agentes de fora da administração, como homens de negócio, foram muitas vezes responsáveis por fazer pressões a ponto de alterar o sistema de correios que então se construía, e, também, buscar outras alternativas para o envio de sua correspondência para além da solução oficial. Isso resultou na inexistência de um sistema de correio único e coeso em toda a América Portuguesa. Não havia uma Administração Central de correios, localizada, por exemplo, no Rio de Janeiro. A subordinação à Lisboa também era tênue. As administrações de correio das vilas e cidades eram subordinadas às Juntas da Fazenda, e, por meio delas, ao Erário Régio. Diante desse quadro organizacional, surgiram, nas capitanias, diversos sistemas postais que, embora funcionassem de maneira articulada, permitindo a comunicação interna, possuíam grande autonomia administrativa.

A implantação dos correios na América portuguesa consiste em um campo privilegiado de análise. Seu estudo permite perceber tanto os planos do centro quanto as respostas periféricas acerca das iniciativas de integração marítima e terrestre com o intuito de melhorar a circulação de informações. E, ao analisar-se as demandas do centro e as respostas dos governos, nota-se que a relação entre os dois polos não foi linear, havendo inclusive espaço para questionamentos e contra-propostas dos representantes da Coroa. Especificamente para o fim do século XVIII, percebe-se o processo dialético entre a visão do centro, que esboçava um entendimento integrado do sistema de correios que se pretendia criar, e os diversos agentes presentes nas capitanias, que colocaram as normas em práticas a partir de um entendimento geograficamente localizado do sistema comunicacional que se poderia então construir.