Viver com o sangue que fica: ‘The Blood That Remains’, pesquisa sobre uma coleção colonial

Organograma das Pesquisas Científicas do Ultramar, Junta de Investigações do Ultramar (ACTD, 1958)

Viver com o sangue que fica: The Blood That Remains, pesquisa sobre uma coleção colonial

Por Ricardo Roque (ICS-ULisboa)

As palavras introdutórias que se seguem foram escritas para o/a leitor/a do artigo “The Blood That Remains” BJHS Themes (2019), de que se dá também notícia neste post.

Existem momentos em que confortará pensar que o colonialismo e o racismo científico apenas pertencem, bem contidos e arrumados, a uma época antiga que acabou. Mas não é assim. É sabido que por mais que o passado passe (ou por mais que queiramos que ele não regresse) há sempre coisas que ficam, bocados que se arrastam. Vivos, ou apáticos; inteiros, ou em destroços; pacificados, ou incómodos, dolorosos e corrosivos como ferrugem. Na memória. Nas palavras ditas. Nos gestos feitos. Na matéria de objetos, lugares, ou instituições. Assim é, por exemplo, com o colonialismo português. Em Portugal, o óbito tardio do longo, complexo e cruel ‘império colonial português’ foi declarado em 1974-75 com a Revolução de Abril e as descolonizações africanas. Mas dele muitas coisas ficaram connosco – ficam – agora, em 2020, situadas no lugar dessas difíceis ambivalências, atravessadas entre passado, presente e futuro; entre a latência e a ação; entre o monumento e a ruína. Mesmo assim, talvez, confortará pensar que o tempo é como uma linha a direito, pontuada por datas e dividida em cronologias, por vezes sujeitas a rotulagens vácuas e pomposas, de “Épocas” e “Eras” nacionais. A moderna disciplina da História, tal como a conhece o Ocidente, tem tratado de erigir estes separadores. Mas a mesma disciplina hoje – e é esse o tipo de ciência histórica que pratico – também é pródiga no desarranjo e exame crítico dessas mesmas arrumações. Pois o tempo, aprendi lendo o filósofo francês Michel Serres, não se assemelha à linha reta traçada numa folha em branco; antes se apresenta como o voo retorcido e emaranhado de uma vespa.

Na última década, a investigação em história e antropologia tem prestado atenção crescente aos modos de sobrevida do antigo ‘colonialismo’ e suas ciências, na Europa e fora dela. Vários autores refletem sobre a atualidade premente de “legados” imperiais; de ”memórias coloniais”; ou do chamado “património” de origem colonial. Outros abordam o tema a partir de usos e modos de presença do passado colonial. Outros ainda, como a norte-americana Ann L. Stoler, falam de “ruínas” duráveis em atividade, considerando, por exemplo, os modos como as pessoas vivem com restos e vestígios vários de regimes raciais e coloniais abandonados. Em relação a alguns destes ditos legados, o debate académico e público – histórico, ético e político – tem sido especialmente aceso. É o caso das coleções científicas de origem colonial – elas também um desses vestígios que ficaram, a seu modo um “legado” colonial. O debate é aceso quando está em causa a permanência ou restituição/repatriamento das abundantes coleções científicas de origem colonial existentes em museus (incluindo museus portugueses) para as suas comunidades de origem ou “ex-colónias”.  E refiro aqui a questão premente e extrema da restituição por um motivo. Enquanto gesto político de reparação histórica, ela demonstra, sob a forma aguda do antagonismo, que dificilmente se domestica a história colonial e racial dessas coleções num hipotético passado – como se as águas dessa história ameaçassem permanente derrame, extravasando o canal que as contém. Ela mostra que também nas ‘coleções que ficam’ o colonialismo continua a insinuar-se como uma figura temporal ambivalente, um tempo que se apresenta à imagem dessa linha feita no ar pelo voo da vespa.

Centro de Estudos de Etnologia do Ultramar, 1958. Fonte: https://actd.iict.pt/view/actd:AHUD24008

Talvez por estas razões escrever e investigar a história da sobrevida das muitas coleções coloniais de cariz racial ou racista em museus portugueses seja importante para repensar o modo como, em Portugal, se vem vivendo com os vestígios que ficam do colonialismo e dos seus racismos. Eles habitam simultaneamente o tempo que passou, aquele em que se vive, e o espectro do tempo futuro que se repudia, ou a que se aspira. Com efeito, bem para lá do fim do império no anos 1970; da morte dos cientistas e instituições coloniais; ou da invalidação mesmo dos métodos e teorias que as originaram, muitas coleções persistem guardadas nos museus. Com elas foram coexistindo imaginários imperiais, e uma ciência colonial, racial e racista, desde à década de 1930 quase até aos nossos dias. De tal modo que o historiador do “colonialismo português” ou da “ciência colonial” não encontra a sua matéria de trabalho apenas entre o pó dos velhos arquivos. Ela atravessa-se consigo no dia-a-dia.

Caixa com material antropométrico das Missões Antropobiológicas de Angola e Timor (ACTD, 1958)

Foi assim que, numa tarde do ano de 2013, me cruzei com a coleção que motivou a pesquisa de que trata o artigo há pouco tempo saído na revista BJHS Themes (revista online que é o braço temático, de periodicidade anual, do British Journal for the History of Science). Num velho armário da década de 1950, encontrei uma coleção de cartões contendo milhares de amostras secas de sangue e grupos sanguíneos originários de populações africanas e asiáticas do antigo ‘império colonial português’. O armário estava guardado num quarto da Rua da Junqueira em Belém, que servia de depósito a velhas publicações e material de escritório do antigo Centro de Antropobiologia do Instituto de Investigação Científica e Tropical (IICT), um Centro extinto por volta de 2004, uma década antes de o próprio IICT ser dissolvido e fundido com a Universidade de Lisboa, em 2015. A aparência de quase abandono destes materiais, contudo, escondia uma história complexa e fascinante de mutações e resiliências várias daquele que foi – e é ainda – o tempo colonial e racial/ista desta coleção. Chamei cronótopo colonial a este modo do tempo se inscrever e ativar na materialidade das coleções e nos imaginários, relações e afetos que as foram mantendo. No caso dos cartões, esta é também uma coleção geneticamente “contaminada” que, conforme descobri, denota por isso uma forma singular de atuar no desmancho do seu cronótopo colonial. Continuo a perguntar-me como devemos nós viver com este sangue que fica; como viver com esta ainda chamada ‘coleção científica’ que subsiste conservada no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa; continuo a perguntar-me como podemos descolonizar-lhe, por assim dizer, o colonialismo e o racismo que em si resta. E aqui me interrompo para que estas palavras de introdução não soem a fechamento a quem me lê agora – antes sirvam de convite à leitura de outro texto. Leia o artigo aqui, em acesso livre , em língua inglesa.